Uma Visão Diferente Sob os Clássicos da Literatura: Dom Quixote, Miguel de Cervantes

Dom Quixote e Nossos Castelos de Areia

Por Gabi Sencades


Certo dia, sem mais nem menos, o Sr. Alonso Quijano autodenominou-se Dom Quixote de La Mancha. Declarou-se cavaleiro andante, dedicado a defender o reino da Espanha contra injustiças e gente "nefasta" – e assim partiu pelo mundo.

Mas o mundo que ele percorria era um mundo transformado: atribuía significados ilusórios a tudo, desconexos da realidade compartilhada pelos outros. Por onde passava, era visto como louco, desprovido de razão – especialmente quando o assunto era cavalaria. Criou um universo particular, habitado só por ele: reinos, castelos, amigos e inimigos imaginários.

Inventou um grande amor, um escudeiro fiel, gigantes malévolos e encantamentos misteriosos – tudo para sustentar sua narrativa. Em seu delírio, aconselhava, ajudava e até mantinha diálogos profundos, que por vezes soavam lúcidos. Mas, em outros momentos, mergulhava na insanidade, colocando-se em perigo, passando privações e, coitado, apanhando sem cessar!

Dom Quixote, claro, sofria de esquizofrenia, tecendo realidades totalmente ilusórias. Porém, se olharmos com atenção, não somos tão diferentes dele. Também atribuímos significados arbitrários às coisas, muitas vezes sem base racional. Criamos nossos próprios mundos fictícios, perseguimos ideias de felicidade e construímos narrativas para justificá-las. E daí... surge o sofrimento.

Quanto mais corremos atrás dessas quimeras, mais a felicidade parece escapar. Ficamos obcecados com planos e metas: "Quando conquistar isso, serei feliz!"; "Quando superar tal obstáculo, serei feliz!"; "Só falta mais um passo..." – mas a tal felicidade nunca chega. Perdemo-nos em pensamentos, rotinas e trabalhos, esperando um "algum dia" que nunca se materializa.

Por quê? Porque somos ignorantes – no sentido mais literal: desconhecemos como criamos nossos próprios "moinhos de vento", nossas ilusões. Vivemos em bolhas de realidade, construídas para sustentar nossas narrativas existenciais: "Sou marido/esposa de alguém"; "Sou funcionário de tal lugar"; "Sou aquele que sofre porque tudo dá errado!"

Spoiler:

No fim, construímos mundos frágeis, como Dom Quixote. E quando eles desmoronam – pois sempre surgem causas e condições que os tornam insustentáveis –, mergulhamos na amargura. "Morremos" para aquela realidade, infelizes e desiludidos. Assim como nosso Dom, que partiu triste, amargurado e "lúcido".

Mas essa lucidez foi superficial: ele apenas reconheceu que seu "castelo de areia" – o pano de fundo de suas aventuras – nunca existira. Morreu deprimido e envergonhado por suas ações. No entanto, ao recuperar a razão, ele esteve quase perto da verdadeira felicidade. Faltou-lhe apenas rasgar alguns véus adicionais: compreender que toda realidade é uma construção efêmera.

Se tivesse percebido que nossa capacidade de criar mundos é mágica – mas que esses mundos são frágeis como bolhas de sabão –, talvez tivesse morrido em paz. Afinal, tudo o que construímos um dia ruirá: relações, carreiras, identidades. A chave para viver feliz está em transmutar esses enganos, sem nos apegarmos ao transitório.

Sonhar, esperançar e planejar são importantes – dão-nos propósito e direção. Mas é crucial lembrar que tudo é impermanente. Até os sonhos realizados perdem o brilho: quem nunca desejou algo (um carro, um amor, um cargo) e, depois de conquistado, deixou de se importar? Isso acontece porque somos movidos pelo desejo, que nos mobiliza e depois nos abandona, levando-nos a novas buscas.

Assim, tornamo-nos reféns de nossos próprios castelos de ficção – pois nada é concreto ou imutável. Perceber isso pode ser desesperador ou libertador, dependendo de quão fundo mergulharmos no autoconhecimento. Sofremos quando nos apegamos a modelos fixos de vida, que inevitavelmente mudarão.

Mas quando aceitamos que tudo está em fluxo, libertamo-nos. Podemos criar novos mundos, novas narrativas – e dançar ao ritmo da vida. Já não lutamos contra moinhos de vento; assistimos a eles surgirem e desaparecerem, como crianças brincando de faz de conta.


REFERÊNCIAS

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha. Edição do Clube de Literatura. Tradução de Aquilino Ribeiro. Dois Irmão, RS: Clube de Literatura Clássica, 2021.

SAMTEN, Lama Padma. A Roda da Vida: Como Caminho Para Lucidez. São paulo:  ‎Editora Peirópolis, 2010.

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