Ao revisitar alguns clássicos da literatura, descubro óticas diferentes, que me fazem redescobrir a obra e refletir novamente sobre ela. Usando um "ground" empírico e teórico adquirido nesses anos, escrevo aqui livremente a fim de aprofundar e externalizar o que foi compreendido. E, quem sabe, ajudar o leitor de alguma forma.
Autoconhecimento, visão de mundo, clarificação das nossas sombras, emoções, traumas, desvirtudes e virtudes seriam objetivos que busco para mim e para quem me lê. Espero, de coração, poder ajudar.
A obra Admirável Mundo Novo se passa em um mundo utópico perfeito, cheio de ordem, assepsia e prazer. Seria a culminância do materialismo, sob a perspectiva de que ele deu certo. Mas será que deu tão certo assim?
Claro que não! O autor, genialmente, nos coloca em um mundo sufocantemente perfeito. Lá, os seres estão completamente aprisionados por condicionamentos pavlovianos (aquele dos ratinhos e dos choques, sabe?), drogas "da felicidade" e uma produção fordista de seres humanos, biologicamente projetados para fazer a tal da civilização funcionar. Aliás, Henry Ford seria uma espécie de messias que trouxe ordem a este mundo (hilário isso!).
O mundo em que o autor nos joga é similar ao reino dos Deuses, na mitologia budista. Lá, os seres também estão presos, também têm a obscuridade da ignorância, só que suas prisões são feitas de êxtase e encantamento. Ninguém se sente preso; pelo contrário, dotados de grande poder e uma pseudo-autonomia, passam seus dias com jogos e passatempos pueris, que não despertam o pensamento reflexivo sobre sua real condição ou mesmo transcendentalidade. Aliás, qualquer tipo de pensamento assim, no livro, é encarado como sofrimento, e já usam uma droga (o Soma) para ficar "confortavelmente chapados".
São seres superfragmentados e superhedonistas. Família e comunidade seriam conceitos obscenos, pois qualquer profundidade sobre sentimentos deve ser extirpada, colocando cada ser como apenas destinado a servir e ter prazer, aproveitando seu status, já biologicamente determinado antes mesmo de nascer. Aliás, eles não nascem; são maturados e despertam, sem útero, sem mãe, sem família, apenas castas rigidamente determinadas pela biologia para fazer a civilização funcionar.
Relacionam-se apenas por prazer; qualquer tipo de apego deve ser cortado, não aprofundando relações, apenas uso e descarte uns dos outros, sendo apenas objetos uns dos outros. Não há filosofia, cultura, e a natureza é motivo de terror, incômodo e repugnância. Todo pensamento reflexivo é subversivo, e aquele que ousa externar essas ideias será excluído, condenado ao ostracismo.
O livro foi lançado em 1941, mas é impressionante como continua atual, como encontramos os mesmos tipos de condicionantes aprisionantes da busca pelo prazer e entorpecimento do pensamento. Preferem-se soluções fáceis de fuga de si, em vez do autoconhecimento e de uma efetiva liberdade. E, para isso, o prazer e o consumo são superestimulados, de forma que as pessoas mantêm a "máquina da civilização" funcionando.
Apesar de trabalharem juntas, é o senso de serviço e operacionalidade que as motiva, pois conexões profundas não existem, não há um real senso de comunidade, e o cooperativismo é mero instrumento para manter a tal "máquina".
Uma sociedade escapista, em que até a ciência é subversiva, pois, se não servir aos ideais civilizatórios, não é considerada boa ciência. Assim, ela só se torna boa quando gera bons produtos utilitários, uma vez que todos querem os produtos da ciência, mas entender como ela é realmente feita, ninguém quer. Algum paralelo com o que vivemos hoje?
Perceba que, em um mundo assim construído, não há felicidade genuína, não há qualquer tipo de introspecção que nos faça compreender o sentido de humanidade ou virtude, não há como nos entendermos como uma real comunidade, que realmente possa ultrapassar o egoísmo e se apoiar em compaixão e lucidez. Pelo contrário, em uma sociedade escapista, temos o amortecimento artificial da dor, das nossas emoções, do sentido de individualidade. Isso pode parecer convidativo, mas leva os seres a uma vida de torpor, sem clareza ou nitidez sobre si mesmos e sobre o mundo.
Um mundo realmente feliz deve dar condições para enfrentarmos nossas tristezas de frente. Sim, precisamos ter o direito de ser infelizes também, de experimentarmos nossas emoções e levar consciência a elas. Precisamos ser imperfeitos, errar, e, assim, aprender e seguir. Um mundo perfeito deve se dar a chance de ser imperfeito também.
Livro: Admirável Mundo Novo
Autor: Aldous Huxley
Editora Globo, 2014
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